quarta-feira, 16 de junho de 2010

A gula eterna

De welvoorziene keuken - Joachim Beuckelaer, 1566

«Heróis do adiamento, campeões de um tempo abolido? No fundo, o ideal da gula não está tanto na apreciação dos pratos, registo e tonalidade em que se insere o gourmet, mas na possibilidade ideal de um repasto poder nunca ter fim. Vista deste modo a gula inscreve-se num desafio à temporalidade, num desejo de suspender a necessidade e a hora, e de ir para além da necessidade e de qualquer noção de tempo, para um terreno de excepção onde se comete um feito enorme: absorver tudo, chegar à plenitude pela introdução de todo o mundo na barriga. É mais do que um triunfo da oralidade desenfreada. Trata-se no fundo de um desejo de eternidade, ficar para sempre a comer, a saborear, a absorver.»

Miguel Castro Henriques

A morte sobrevém de sorrate como um ladrão na noite.
E quando a morte vem, é tão copiosa a abundância que adormenta os homens num angor animal: subtraem-se às arcas e arcazes as leguminosas que vão inchar na água; os vegetais escumam a baba seivosa no lume lívido das cozinhas; as espumadeiras fendem a fervura, e emergem com talos, caules, folhas, nervuras, a ressumarem vapor e água fervente; as carnes rechinam, frigidas no unto pingue; o azeite é vertido em lamparinas e almotolias, e as passeiras e os mosqueiros animam-se no abre-fecha das suas portas retrácteis; evisceram-se aves e espostejam-se quadrúpedes.
Os animais têm um olhar guicho.
Sobre o desvelo da morte sobrepaira a voracidade dos vivos.
Sobre a voracidade dos vivos sobrepaira o desvelo da morte.

No fim do dia a poalha do vapor de água já empapou o fumo das chaminés, e entrou no labor das cozinhas e no mormaço das tabernas. A névoa emacia a algidez do ar, e no terrunho lodoso das ruas as botas dos dois homens aumentam de peso com o barro de aluvião que desce do alcantil dos vinhedos.

Há perfis humanos cavalares a entrarem nas cozinhas fuliginosas. Uma taberna térrea lucila, entreaberta. Entrevêem-se mesas recobertas de travessas e copos, pratos e garrafas, sobre as quais sobrepairam, à mistura com alhos e cebolas entrançadas, presuntos, chouriços, salpicões, que vão libertando pequenas gotículas de enxúndia.
Nos carões opados pelos álcoois fremem papadas, rouxidões, refegos; o azeite pende das queixadas para os peitilhos, e os rostos abrem-se em risos alvares ou mascarando-se em esgares e pavores de bebedeira.
Os dois homens sentam-se na mesa do fundo. O empregado, rojando os tamancos de carvalho brochados pelo chão, passinha a adipose e abeira-se da mesa.
- Carnes, peixes, legumes, frutas, vinhos, cervejas?
- Tudo! Queremos tudo!
- Quanto tempo têm?
- Todo o que nos resta.